Este ano, na feira do livro de Bogotá, uma autora chamou a atenção: Carolina Skyldberg [1]. Ela mostrou à Colômbia, em seu livro, a jornada de adotada quando criança por casal sueco até adulta que buscava por sua mãe biológica: Adoção, deixar curar a alma [Adopción, dejar sanar el alma].
Colômbia e Suécia não são países quaisquer no universo da adoção. O primeiro tem uma alta taxa de envio de crianças para o exterior (Instituto Colombiano de Bienestar Familiar, 2017); o segundo, em termos relativos, é o país que mais as recepciona (Yngvesson, 2010). Ao se olhar para a Europa e para os EUA, são incontáveis as narrativas produzidas por adultos que foram adotados quando crianças, oriundos de países que não aqueles em que acabaram por crescer. Existe, de fato, uma verdadeira economia transnacional, definindo países como emissores ou doadores de crianças e outros como receptores delas. Isso acaba por desenhar no globo uma rede de fluxos de origem e destino relativos à adoção.
Em maio deste ano, no Consulado Geral do Brasil, em Paris, ocorreu a Jurnée des adoptés du Brésil (Jornada dos adotados do Brasil), na qual os temas da busca das origens e do testemunho sobre a adoção tiveram destaque. Diversos testemunhos de adultos adotados encontram expressão na literatura e em produtos audiovisuais. Dentre essas narrativas, aquelas que descrevem uma busca das origens, um retorno ao país natal, a necessidade imperiosa de encontrar alguém ou algo do passado, muitas vezes um tempo quase desconhecido, são bastante frequentes. Carolina Skyldberg e Christina Rickardsson, a última tendo ocupado lugar de destaque no VII Congresso Nacional de Psicanálise, Direito e Literatura, compartilham experiência comum: a busca das origens e o mesmo país de destino.
O que Christina diz em seu livro? Ela fala de si, de dois países, de como se divide entre Christina de Norrland e Christiana do Brasil, apontando haver duas pessoas nela. Christina fala também de justiça e injustiça social ou mesmo de legalidade e ilegalidade do processo judicial relativo à sua adoção (Rickardsson, 2017, p. 126). O que se transmite no testemunho de Christina? Tanto no testemunho de Christina como nos demais de mesmo gênero, são recorrentes os comentários sobre certo mal-estar, sobre uma instabilidade vital, pesadelos, desconforto que deixa marca na vida e na memória, a despeito do amor e da inserção na família e na comunidade adotiva. Ou, ao menos, a expressão de curiosidade sobre o que se passou, sobre o por que da adoção. Acerca disso, é interessante notar que Patrick, irmão de Christina, teria tido curiosidade sobre o passado dele, mas não se lançou à aventura de investigá-lo; Christina nega a curiosidade, mas fala sobre a “coragem de retornar ao Brasil para procurar pela […] mãe biológica e para encontrar alegria na vida” (Rickardsson, 2017, p. 98).
Seguir em frente ou se deter talvez não seja mera questão de escolha ou curiosidade nesses casos. A esse respeito, aliás, a tradução do livro de Christina utilizada em outras edições é Nunca deixe de caminhar. Estariam os dramáticos relatos sobre a busca das origens determinados por certa “biologização” da vida social e mesmo pelo enquadramento legal que separa estritamente família natural e adotiva? (Fonseca, 2010; 2015). Ou esses testemunhos apontariam para outros sentidos?
O objetivo aqui é o de analisar o significado da busca das origens, tendo por ponto de partida o testemunho de Christina Rickardsson em seu livro Nunca deixe de acreditar. A narrativa propiciada por ela será relacionada a outras duas: a de Kiko Goifman, em seu filme 33, e a de Sophie Brédier, que tem uma trilogia de documentários na qual trata de sua experiência adotiva. Em um desses filmes, ela mostra seu retorno à Coreia do Sul (Brédier & Aziza, 2000). Nesses testemunhos observa-se que a prática adotiva envolve a experiência de se traduzir segundo novas coordenadas, inventando-se, mas, ao mesmo tempo, esse processo não é realizado sem a existência de vestígios, restos que compõem a subjetividade do adotado.
A adoção reconfigura o espaço do parentesco, complica a ideia de identidade nacional, fabrica uma nova genealogia, deixando notar sua dimensão idiomática, da qual retira sua plasticidade e força, tal como entendido por Yngvesson (2007): a língua criando, simultaneamente, formas de pertencimento e resistência [continua].
1. Cf. Colombiana adoptada por suecos convirtió su historia en una exitosa novela.
Publicado originalmente em Cartas do Litoral.