O que se pode entender por ‘violência contra a mulher’?
Maria Filomena Gregori em seu livro de 1992 mostra o quanto o vigor de uma pesquisa pode perdurar. Ao se lançar sobre os temas ‘violência’ e ‘gênero’, aponta para alguns caminhos de investigação que talvez ainda não tenham sido explorados suficientemente, deixando uma trilha a ser seguida.
Tal como Ruth Cardoso assinala na apresentação, o livro é composto de duas partes:
“A primeira trata da prática feminista em uma instituição criada para combater a violência contra as mulheres. Analisando os plantões de atendimento, a investigação mostra os impasses que se colocaram para esse tipo de assistencialismo e que levaram à extinção da maioria dessas associações. Na segunda, o foco da análise são as mulheres que visitam o SOS pedindo apoio. Foi o esforço em compreendê-las […] que fez aflorar as limitações das práticas institucionais feministas e, ao mesmo tempo, trouxe à luz os significados das mulheres que vinham buscar apoio” [p. 11].
Gregori explicita que um dos aspectos mais importantes do estudo que realizou é a comparação entre a visão feminista, encarnada no serviço no qual se inseriu para a pesquisa de campo, e as interpretações das próprias mulheres acerca das situações de violência vivenciadas por elas. É no mal-entendido, na lacuna que se revela entre uma e outra parte, que a investigação realizada encontra seu lugar.
Na primeira parte da pesquisa, adquire visibilidade a inviabilidade de acolhimento da mulher ante as concepções pré-estabelecidas do que seria o certo e o errado; do que deveria ser feito para retirá-la da situação de violência e como conduzi-la por esse caminho; a certeza do que seria violência e os seus significados. Essa dimensão mostra-se passo-a-passo com a descrição de como o SOS-Mulher estruturou-se em São Paulo, seus desafios, o perfil de suas integrantes e as expectativas que o marcavam, bem como o seu isolamento e os motivos de seu fim: “A falta de uma reflexão do coletivo sobre o universo cultural das mulheres atendidas e sobre as suas angústias (e que angústias eram essas) foi o aspecto mais marcante do período observado” [p. 72].
A falta de reflexão mencionada acima, é indicada por Gregori em diferentes momentos do texto. Trata-se da via pela qual é assinalada a importância de não se desconsiderar que, por vezes, haveria satisfação e benefícios (afetivos e/ou financeiros, por exemplo) nas relações atravessadas pela violência. Nesse quadro, seria importante permitir que esses significados pudessem ser expressados e, talvez, apreciados na tentativa de se acompanhar a tênue linha que ligaria enunciado e enunciação.
Se, por um lado, Gregori aponta para os motivos pelos quais as mulheres poderiam não perceber os conflitos vivenciados como originários de uma relação de dependência e submissão, por outro, citando pontualmente Bataille, ela sublinha a experiência de violência como resultando de uma relação de parceria.
De diferentes maneiras a ideia de parceria e de erotismo estará presente na segunda parte do livro. Trata-se de aspectos importantes da pesquisa que, talvez, não tenham sido levados às últimas consequências no texto, deixando, no entanto, marcas importantes sobre ele. É nesse sentido que Gregori afirma: “Existe alguma coisa que recorta a questão da violência contra a mulher que não está sendo considerada quando ela é lida apenas como ação criminosa e que exige punição” [p. 183].
Na linha salientada acima, percebe-se no texto, no apelo ao Marquês de Sade, o esforço para entender o significado da queixa no contexto das falas das mulheres. É desse esforço que Gregori irá perguntar-se se não seria o lugar de vítima constituído pela queixa o oposto do que seria encontrado nos discursos marcados pela confissão e se, desse modo, a queixa não seria, a seu modo, cúmplice da violência.
O livro ‘Cenas e Queixas’ ainda mantém o frescor da pesquisa recém-realizada. Por isso, o texto aponta importantes caminhos a serem seguidos, a fim de se colocar em perspectiva os temas ‘violência’ e ‘gênero’ e os seus desafios. Olhar para o passado e encontrar esse escrito, talvez seja uma oportunidade de vislumbrar leituras que ainda poderão ser suscitadas no futuro sobre temas tão atuais.
Gregori, M. F. (1993). Cenas e queixas: Um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. São Paulo: Paz e Terra/Anpocs.
Publicado originalmente em Cartas do Litoral